21 Fevereiro 2022
Um simpósio organizado no Vaticano aborda o status dos padres católicos, cuja imagem é degradada por escândalos de abuso sexual.
A reportagem é de Cécile Chambraud, publicada em Le Monde, 17-02-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Comprometida pelas revelações das violências sexuais cometidas por membros do clero, posta diante do colapso das vocações nos países ocidentais e da crítica ao clericalismo, a figura do padre católico passa hoje por uma forte crise.
As mais altas autoridades da Igreja, incluindo o Papa Francisco, tentam lhe dar um novo impulso, participando, na quinta-feira, 17 de fevereiro, de um simpósio sobre o sacerdócio organizado no Vaticano até este sábado. O registro da teologia fundamental escolhido pelos organizadores não excluiu as questões candentes como a do celibato obrigatório, que alguns, incluindo altos prelados, gostariam de ver se tornar facultativo.
Foi o cardeal Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos, que tomou a iniciativa desse congresso. Ele recebeu o apoio do papa, que lhe emprestou a grande Sala Paulo VI, dentro do Vaticano, para organizá-lo na presença de cerca de 500 pessoas, principalmente padres e bispos.
Como sinal da atenção dirigida a esse tema, devem participar do simpósio pelo menos cinco chefes de dicastério da Cúria Romana, além do secretário de Estado, Pietro Parolin, que presidirá a missa de sábado.
O cardeal Ouellet logo situou a reflexão coletiva no contexto da “tragédia dos abusos sexuais cometidos pelo clero”. Para superar essa “crise sacerdotal do nosso tempo”, ele considerou necessário “reconstruir o horizonte global do sacerdócio” hoje, marcado por “uma mentalidade clerical de poder e uma atitude de controle excessivo do clero sobre o conjunto da comunidade”.
Os organizadores inscreveram o congresso na preparação do próximo Sínodo dos Bispos, que, em 2023, a pedido do papa argentino, tratará da governança católica.
Em um longo discurso na quinta-feira, Francisco optou por ficar de fora das “intermináveis discussões sobre a teologia do sacerdócio” para se ocupar do modo de vida, valendo-se da sua experiência pessoal. “Não sei se estas reflexões são o canto de cisne da minha vida sacerdotal”, disse o argentino de 85 anos a esse respeito.
Ele recordou os padres que sustentaram o seu caminho e aqueles que ele teve que “acompanhar porque haviam perdido o fogo do primeiro amor, e o seu ministério havia se tornado estéril, repetitivo e quase sem sentido”. Ele reconheceu que ele mesmo havia passado por “momentos de provação, dificuldade e desolação”.
“O celibato é um dom que a Igreja latina conserva, mas é um dom que, para ser vivido como santificação, precisa de relações saudáveis, de relações de verdadeira estima (...). Sem amigos e sem oração, o celibato pode se tornar um fardo insuportável e um contratestemunho da própria beleza do sacerdócio.”
A questão do celibato obrigatório dos padres foi relançada por ocasião do Sínodo sobre a Amazônia, realizado em Roma em 2019, e pela ampla reflexão realizada pela Igreja alemã. O “Caminho Sinodal” alemão, realizado em conjunto por membros do clero e por leigos, iniciou em 2019 após um devastador relatório sobre os abusos sexuais.
O celibato dos padres, mas também a participação dos leigos na escolha dos bispos, a homossexualidade, a contracepção, o acesso das mulheres ao diaconato ou ao presbiterado: todos esses temas, vistos com temor ou com hostilidade por Roma, foram discutidos e foram objeto dos primeiros textos – ainda não definitivos – no início de fevereiro.
Naquela ocasião, o cardeal Reinhard Marx, arcebispo de Munique, se pronunciou no dia 2 de fevereiro a favor de uma revogação da obrigação do celibato para os padres. “Para muitos padres, seria melhor se fossem casados”, afirmou esse conselheiro muito próximo do Papa Francisco, em entrevista ao jornal Süddeutsche Zeitung. “Acho que as coisas como estão agora não podem mais continuar assim”, acrescentou o prelado.
Outro cardeal havia se expressado nesse sentido alguns dias antes. “Tenho uma opinião muito elevada sobre o celibato, mas ele é indispensável? Por que não ter também padres casados?”, perguntou Jean-Claude Hollerich, arcebispo de Luxemburgo e presidente da Conferência Episcopal da União Europeia, em entrevista ao jornal La Croix no dia 22 de janeiro.
O Papa Francisco já disse que não é a favor de um celibato opcional. “É pessoal, mas eu não vou fazer isso, está claro. Sou uma pessoa fechada? Talvez. Mas não me sinto em condições de me apresentar diante de Deus com essa decisão”, declarou ele por ocasião de uma coletiva de imprensa em 2019.
Depois do Sínodo da Amazônia, em que, no mesmo ano, a maioria dos bispos se pronunciou a favor da ordenação de homens casados em certos casos, Francisco não havia recebido essa faculdade.
No entanto, ao não renovar a sua oposição no seu discurso da quinta-feira, o pontífice jesuíta indica de alguma forma que o debate pode continuar na instituição. Essa “permissão” para discutir parece se estender a outros temas sensíveis. Como o da estratégia católica diante dos projetos de liberalização do suicídio assistido ou mesmo da eutanásia, em discussão em diversos países europeus.
Inserida em um projeto de lei italiano, a questão apareceu em janeiro em um artigo publicado pela revista jesuíta La Civiltà Cattolica, que não é publicada sem o imprimatur do Vaticano. Carlo Casalone, professor de Teologia Moral da Pontifícia Universidade Gregoriana e membro da Pontifícia Academia para a Vida, defendia nesse texto a ideia de que, ao invés de arriscar ver a adoção de uma lei que autorizasse a eutanásia, a Igreja Católica poderia legitimamente apoiar, como um mal menor, uma lei mais restritiva, que só permita o suicídio assistido em casos bem definidos, às custas de uma distorção da sua doutrina, que proíbe qualquer ajuda ao morrer e defende a vida desde a concepção até ao seu fim natural.
“O magistério da Igreja pode aceitar se comprometer com aquela que ele chama, em matéria de aborto induzido, uma lei imperfeita”, destinada a “evitar males piores?”, resumia a moralista Marie-Jo Thiel, em janeiro, no Le Monde. Para a Igreja, essa poderia ser uma forma de permanecer como sujeito no debate público, enquanto, em questões desse tipo, as sociedades europeias se afastam cada vez mais das suas posições.
Uma reforma do Papa Francisco provavelmente está destinada a fortalecer a capacidade do Vaticano de se fazer ouvir sobre esse tipo de questões. Na segunda-feira, com o motu proprio Fidem servare (guardar a fé), o papa argentino reestruturou a Congregação para a Doutrina da Fé, o órgão encarregado de vigiar sobre o respeito dos dogmas.
Absorvida pelo número crescente de dossiês relativos aos abusos sexuais de menores por parte do clero, cuja instrução lhe foi reservada desde 2001, a Congregação teve que negligenciar um pouco as questões relacionadas à doutrina da Igreja. Sua reestruturação em duas seções visa a consolidar as suas capacidades doutrinais.
A nova seção terá que “favorecer os estudos (...) sobretudo diante das interrogações apresentadas pelo progresso das ciências e pelo desenvolvimento da sociedade”, especificou Francisco.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Celibato dos padres e fim da vida: Papa Francisco abre espaço para o debate - Instituto Humanitas Unisinos - IHU